I nspeções em manicômios judiciários do país, realizadas pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), revelaram o uso de choque elétrico, medicalização forçada, violência física e psicológica, isolamento punitivo e outras práticas de tortura e violações. As conclusões estão no Relatório de Inspeção Nacional: Desinstitucionalização dos Manicômios Judiciários , lançado nesta segunda-feira (28) pela entidade, em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
“É uma denúncia pública e técnica que escancara o que o Brasil insiste em esconder através dos muros e grades dos estabelecimentos de custódia e tratamento psiquiátricos: a continuidade de práticas de tortura, abandono, medicalização forçada e o encarceramento que pode equivaler, na prática, com prisões perpétuas”, disse a presidenta do CFP, Alessandra Almeida, durante evento de divulgação do relatório.
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Os manicômios judiciários são destinados a pessoas com transtorno mental ou deficiência psicossocial em conflito com a lei e estão no foco da Resolução nº 487/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que criou a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e indicou a necessidade de fechamento desses locais .
Segundo Almeida, foi observado um contexto de violações sistemáticas e institucionalizadas nas instituições asilares, como contenções físicas e químicas sem respaldo clínico, agressões físicas e verbais, isolamento punitivo, violação de vínculos familiares e ausência de canais de denúncia.
A inspeção identificou 2.053 pessoas com deficiência psicossocial em conflito com a lei ainda institucionalizadas nesses locais de caráter asilar - que é centrado na exclusão e isolamento.
“São práticas que contrariam frontalmente a prescrição de cuidado e atenção à saúde que devem ser direcionadas à essa população, conforme o que estabelece a Lei 10.216/2001 [Lei da Reforma Psiquiátrica], Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário e uma série de dispositivos e normativas que orientam a política de saúde mental no país”, disse.
Equipes do CFP fizeram inspeção presencial em 42 instituições, de janeiro a março de 2025, em 21 unidades federativas, das cinco regiões do país. Realizado dez anos após o primeiro diagnóstico feito pela entidade sobre o tema, o novo relatório concluiu que esses locais continuam reproduzindo “o pior da prisão com o pior do hospício”.
“A negligência, a lógica do castigo, a violação e o abandono estatal que chega a resultar em prisões perpétuas são marcas dessas instituições”, apontou a entidade.
O documento pontua ainda que as instituições têm problemas como infraestrutura degradada, restrições severas à circulação, falta de acessibilidade e superlotação ; o acesso à água potável e à alimentação é limitado e insalubre; e faltam itens básicos para a higiene pessoal e roupas de cama. Segundo o CFP, foram identificadas também diversas formas de precarização do trabalho.
“Quando olhamos para os manicômios judiciários, vemos pessoas que não são punidas pelo que fizeram mas pelo que se teme que possam fazer. Esse é o conceito de periculosidade, uma noção subjetiva e frequentemente enviesada, racializada e capacitista”, disse a presidenta do conselho.
Com base no pensamento de Franz Fanon, ela mencionou que a psiquiatria pode servir como ferramenta de opressão quando trata os sujeitos como problemas a serem corrigidos e não como pessoas a serem compreendidas. “Fanon, que foi psiquiatra e revolucionário, já advertia que a colonialidade habita os discursos da normalidade, do diagnóstico e do controle”.
“No Brasil, essa colonialidade se expressa de forma aguda na vida das pessoas negras, pobres, periféricas e com sofrimento psíquico. Ana Flauzina [doutora em Direito] afirma que o sistema prisional brasileiro é um sistema de desaparecimento de corpos negros, uma tecnologia de morte lenta e silenciosa”, acrescentou.
Ao citar ainda Carla Akotirene, autora da obra Interseccionalidade, Alessandra Almeida ressalta os cruzamentos entre raça, gênero, classe e deficiência no contexto da construção do que seria um “sujeito perigoso”.
“Isso nos faz reafirmar que, pelo menos, para as análises, investigações e práticas psicológicas, já não é possível - diante das complexidades sociais impostas - que não utilizemos a interseccionalidade como um elemento importante da nossa práxis”, concluiu.